terça-feira, 21 de abril de 2009

Ella, Praga e Carlos Alberto



Duas semanas passaram-se até receber a primeira carta de Carlos Alberto, e também foram duas semanas em que Ella gritou sem parar dentro da minha cabeça.

Ter três mulheres dentro de mim é um saco, mas pior ainda é ter uma menininha mimada que quer tudo e mais alguma coisa, ok, Ella não é mimada, mas é uma chata que as vezes dá vontade de mandar para o Afeganistão como arma secreta.


Não me entendam mal, das três a Ella é a minha preferida, não contem as outras duas pelo amor de Deus, acontece que houve um tempo em que a Outra dominou o nosso corpo, Ella diz que este foi o "tempo da escuridão", pois tudo era sombrio e triste.

Neste tempo a Estranha ainda não havia aparecido, e eu e Ella ficamos presas num porão escuro, que tresandava a mofo, dentro do nosso próprio corpo, acabei por a conhecer melhor, e descobri algo que me deixou estupefacta, apesar de Ella ser uma menina, era a mais velha de nós três, tinha sido ela a viver mais vidas.

Acho que por isso Ella tem alma de criança, por ela ser tão evoluída, e saber, e ter coragem para lutar por, exactamente aquilo que quer.

E quando nossos olhos encararam Carlos Alberto pela primeira vez, foi Ella a primeira a reagir, nunca a tinha visto daquela maneira, não parava de saltar e cantar dentro de mim, confesso que isto é um pouco...humilhante, tentar disfarçar uma alma saltitante e cantante que vive dentro da minha cabeça, é humilhante porque simplesmente no confronto EllaVs Caroll, bem...adivinhem só quem é a vencedora?

Foi também Ella a primeira a perceber que Carlos Alberto era parecido connosco, levava dentro de si mais almas, pelo menos tínhamos reparado em uma, a alma feminina.


A Outra, céptica como ela só, disse logo que éramos todas loucas, e que aquilo não era um homem, que só pra variar embarcaríamos numa canoa furada e ela teria, como sempre, dar uma de salva vidas. ( As vezes a Outra pode ser pior do que um chute no saco)

A Estranha, desinteressada como ela só, ficou logo de fora do debate, disse que por ela o que eu e Ella decidissimos ela aceitaria, a Estranha e a Outra não se falam, algum tempo atrás tiveram uma grande briga, cuja razão não me deixam saber...

Perante aquilo tudo, e a verdade é que a minha menina estava amando como uma adulta, foi então que tomei uma decisão aterradora, cederia o controle completamente a Ella, o problema é que não tinha a certeza se ela o devolveria.

Durante as duas semanas em que Ella gritava, o grito não era de fora para dentro, e sim de dentro para fora, estava tão insuportável que a minha família já pensava seriamente em: Opção A: Enviar-me para o Brasil com passagem só de ida, Opção B: Deitar Prozac para dentro do meu café sem eu perceber e finalmente Opção C: Ignorar-me completamente, a ultima opção acabou por vencer.

Entretanto o prozac chegou em forma de carta, e Ella estava tão feliz, que nós as três não conseguimos evitar de deixar a alegria infantil de nossa companheira dominar todos os nossos sentidos.
Acontece que em quanto Ella é infantil, a Estranha é desinteressada e a Outra é céptica, e um pé no saco, eu, Caroll, sou como São Tomé, ver para crer, e isto de Carlos Alberto ser homem e mulher ao mesmo tempo, estava a me deixar um bocadinho nervosa.

Depois de meses a trocar correspondência, decidimos finalmente marcar um encontro, ele sugeriu Sintra, mas Ella disse que não, que queria ir na cidade que ela teimava em chamar de Praga, não que ela achasse que a cidade era uma "praga", mas por ela lembrar de Praga, capital da República Checa, toda vez que ouvia o nome da tal cidade, esquisitices e caprichos de Ella a parte, lá fomos nós.


Combinamos de nos encontrar num café mesmo na estação de comboio, fomos as primeiras a chegar, sentamos na esplanada e acendemos um cigarro para descontrair, fazia mais ou menos uns cinco minutos que estávamos ali, quando derrepente a minha, a nossa, pele ficou arrepiada, Ella, que ainda estava no controle, disse de dentro para fora: "Ele está aqui..."

Foi quando uma mão quente pousou no meu ombro, no nosso, nos viramos e ali estava ele, a nos olhar da mesma forma de meses atrás, o mesmo sorriso de canto de boca, a mesma postura confiante...entretanto...a alma a dominar aquele corpo não era a mesma do primeiro encontro, desta vez era a alma feminina.

É preciso entender que Carlos Alberto não se veste como mulher, não tem gestos de mulher, não fala com voz de mulher, simplesmente...ele é uma mulher...ao mesmo tempo que é um homem.
Imaginem um homem que tivesse o poder de ler a mente feminina, e de saber exactamente aquilo que queremos ouvir, da forma como gostamos de ser beijadas, da forma como gostamos de ser amadas, este é Carlos Alberto, o que a Outra chama de "uma covardia com os outros machos".

Acontece que eu sou uma mulher peculiar, sou quatro mulheres ao mesmo tempo, e agradar a todas nós da mesma forma, é quase impossível, e aquilo da alma feminina estava a incomodar- me imensamente.
Ella entregou o meu corpo e o meu coração numa bandeja dourada para Carlos, e ele recebeu a oferta completamente maravilhado.

De uma coisa todas nós entendemos e concordamos, fazer amor com paixão e a coisa mais deliciosa da face da Terra, e foi no meio dessa loucura e cheia de desejo que descobri que não dava, a alma feminina de Carlos estava mesmo a mais.

Isto aconteceu quando ele chegou ao clímax e gemeu de desejo, o problema é que neste momento ele gemeu como uma mulher, e não, eu já tinha três mulheres a partilhar uma cama comigo, mais uma era completamente inaceitável.

"Preconceituosa"
Foi o que ele disse quando saltei para fora da cama a gritar: "Deixa de ser mulherzinha Carlos Alberto!"

Neste momento era eu a tomar o controle, e estava tão irada que nem ouvia Ella a gritar de fora para dentro.

"Preconceituosa eu? fala sério Carlos, eu simplesmente não sou lésbica!"

Nem sabia exactamente o que estava a dizer, mas tinha de dizer algo não é?


"Lésbica? Pelo amor de Deus Caroll, és uma sessão espirita ambulante, aí a baixar personalidades diferentes a todo momento, e vem me criticar por eu ter apenas uma outra personalidade a viver dentro de mim?"

Ok, ele tinha razão, mas naquele momento eu não conseguia pensar em mais nada além de "eu estava deitada na cama com outra mulher", e isso estava a fazer-me uma confusão enorme.

"Tu não amas-me...e nem ama as suas outras mulheres, és uma egoísta, só amas a ti mesma."

Aquelas palavras caíram como uma bigorna na minha cabeça, o problema é que sou uma personagem real de um mundo real, não sou como os desenhos animados, não me reconstruo em segundos, fiquei ali parada a olhar para a parede, com os olhos cheios de lágrimas, porque tinha acabado de ser ofendida por uma mulher a viver num corpo de homem.


"Tenho pena da Ella, de todas vós ela é a única que ama com toda a liberdade que um amor possui, Ella já caminha no lado selvagem..."

Disse isso virando as costas e batendo a porta, deixando-me ali a pensar como ele sabia o nome da Ella, se eu nunca a tinha apresentado...?

Ella não voltou a falar comigo depois deste dia, nem a Outra, nem a Estranha, era apenas eu e eu no controle do meu corpo, o que eu outrora achava que seria um paraíso, mostrou ser um inferno em Terra, foi preciso aparecer um homem com alma feminina na minha vida, para eu entender que o amor, assim como as almas, não é linear.

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