domingo, 19 de abril de 2009

Numa tarde de primavera em Sintra...


Nem sempre os homens nascem com a alma masculina completamente formada, e alguns nunca chegam a ter por completo, e ainda há, em pequena quantidade, aqueles que transitam entre o Ser masculino e o Ser feminino.

Carlos Alberto é um destes poucos afortunados, que conseguiu o equilíbrio de ser homem e mulher ao mesmo tempo.

Desde a meninice, ele sempre teve o dom de encantar os dois lados, onde entrava deixava homens e mulheres encantados, não por a sua beleza, Carlos Alberto não era nada bonito, mas ele possuía uma certa postura, um certo olhar, um certo falar, que deixava todos de boca aberta.

Conforme foi crescendo, foi crescendo também a sua lista de amantes, de ambos os sexos, Carlos não se considerava nem homo, nem bi, nem nada, ele era apenas um ser que possuía duas almas, e por isso tinha de satisfazer as duas da mesma forma, nem a mais nem a menos.

Apesar de nunca ter a cama vazia, ele sentia as suas duas almas incompletas, e perguntava-se como isso era possível, afinal se ele era macho e fêmea ao mesmo tempo, como poderia ainda haver algo mais para ser?

Era uma noite de começo de primavera, e eu estava sentada na cama a assistir o jornal da noite, assistir como quem diz, pois os meus olhos estavam fixos no écran, mas os meus pensamentos estavam congelados em coisa alguma, quando o homenzinho da meteorologia disse que no dia seguinte iria fazer um dia de sol, como ainda não havia feito neste ano, nem pensei, sentei em frente ao computador e reservei uma passagem no primeiro comboio da manhã para Sintra.

Uma das razões de ter mudado de ideia de ir viver para São Francisco e ter vindo para Portugal, foi o facto de ter visto Sintra na minissérie da Globo, "Os Maias", não sei explicar o porque, mas houve qualquer coisa que mudou em mim com aquelas imagens, tinha de a conhecer.

Não há nada mais belo do que a cidade de Sintra num dia ensolarado de primavera, e enquanto o comboio deslizava lentamente pelos trilhos, ia relembrando a primeira vez que a visitei, era um dia de chuva, e fiquei maravilhada com o facto de nem num dia do mais bruto inverno, a cidade não estar cinzenta, odeio cidades cinzentas.

O comboio parou e uma voz fanhosa avisou que tínhamos chegado ao nosso destino, achei aquilo engraçado, como aquela voz fanhosa sabia que ia de encontro ao meu destino?

Sentei na esplanada de um café na minha amada Vila Velha, que fica num ponto onde se pode admirar quase toda a beleza de Sintra, pedi uma meia de leite clarinha com canela, e fiquei ali a imaginar como seria aquilo tudo em outro século, em outra vida.


Estava eu a beber a minha meia de leite, quando senti alguém a me olhar, fiquei com a pele arrepiada, pois sentia um olhar fixo em mim, foi quando eu me virei e o vi pela primeira vez, Carlos Alberto.

Ele era pelo menos uns quinze anos mais velho do que eu, era mais alto, tinha cabelos brancos, e um sorriso...tentador...olhava-me como se fosse a única pessoa sentada naquela esplanada, olhava-me como se fosse a única pessoa existente naquela terra, no mundo, no universo, e fazia isso tudo com um sorriso de canto de boca que me deixava tonta.

Quando ele levantou-se de sua mesa e começou a caminhar na minha direcção, perdi completamente o controle dos meus actos, não sabia se levantava e fugia dali, ou se apenas esperava para ouvir o que ele tinha para me dizer, a resposta foi fácil, continuei congelada no meu lugar, com o olhar fixo nos seus olhos.

"Olá, boa tarde, eu sou o Carlos Alberto, posso sentar-me ao seu lado?"

As palavras simplesmente saiam da sua boca, e eu nem tinha tempo de a ver mexer-se, ele não esperou a minha resposta, continuou a sorrir e sentou ao meu lado, mesmo ao meu lado.

Eu, completamente atrapalhada: Desculpa, mas quem é você???

Ele, ainda a sorrir com o canto da boca: Já lhe disse eu sou o Carlos Alberto, e tu, como te chamas?

Mas que homem insolente, como ele poderia achar que tinha o direito de sentar na minha mesa sem ser convidado e que eu ainda lhe diria o meu nome?

Eu, eu sei nem pensei apenas disse: Eu sou a Caroll, porque você acha que...

Ele, interrompendo o meu único acto sensato naquela tarde: Caroll? Só? engraçado, achei que tinhas um nome mais comprido...

Não entendi aquela afirmação, mas respondi que na verdade chamava-me Carolline, mas que preferia Caroll, e não entendi mais ainda quando ele respondeu que não era isso, que sentia que tinha outros nomes.

Ficamos ali sentados a tarde inteira, e quanto mais ele falava mais eu reparava que ele não era uma pessoa só, havia momentos que quase que via outra pessoa sentada naquela mesa, e por mais estranho que pareça, estava mais curiosa do que assustada, afinal eu também carregava outras pessoas dentro de mim.

Quando a noite foi se aproximando, ele perguntou-me onde estava hospedada, disse que não havia dado entrada em hotel algum, pois apanharia o comboio das 23hs de volta para o Algarve, neste momento tive a certeza que estava na presença de um ser com duas ou mais almas, pois a tristeza marcada no seu rosto era a tristeza de várias pessoas juntas.

Ele acompanhou-me até a estação, sempre a me encarar da mesma forma que me olhou da primeira vez, eu sentia a minha garganta seca, e o coração dilacerado, não queria dizer adeus aquele estranho que me parecia tão familiar, quando o barulho do comboio a chegar assombrou os meus ouvidos, arranquei um pedaço de papel do livro que carregava nas mãos, apontei a minha morada com as mãos tremulas, e a coloquei na palma da sua mão como se de um tesouro tratasse.

Ele não disse nada, apenas deu-me um beijinho na testa, levantei-me a correr e saltei para dentro do comboio, sentei no primeiro banco vago que avistei e apressei-me a olhar pela janela, ele já não estava lá.

Duas semanas depois, estava sentada no meu quarto, com os olhos congelados no écran da televisão, quando meu tio gritou da sala "Caroll chegou uma carta para você!!!", nem me mexi, irritante como ele é, gritou de novo "É de um tal de Carlo..." nem chegou a terminar a frase, pois eu já tinha saltado pra cima dele e puxado violentamente a carta de suas mãos, foi a primeira vez que recebi uma carta de Carlos Alberto.

1 comentário:

Mariana Abi Asli disse...

Creio que cada ser humano nasce com a feminilidade e masculinidade dentro de si, independente do sexo... o que vai "direcionar" sãos os valores culturais impostos pela sociedade que o rodeia...se for menina é rosa, se for menino é azul, etc e tal...

Este seu texto me lembra algumas crônicas que fiz sobre relacionamentos e emoções minhas vividas...

Você tem alma de artista, é intensa em suas palavras,sem ser "pegante"...parabéns pela escrita continue assim...

Sou agora sua seguidora...

bjkitas
Mari